domingo, 6 de dezembro de 2009

. O Dia Internacional Para A Eliminação Da Violência Contra A Mulher na Gama Barros




No passado dia 25 de Novembro a nossa escola recebeu a APAV, que animou uma sessão sobre violência doméstica, muito concretamente sobre a violência doméstica contra a mulher. A sessão foi seguida de debate, aceso e obviamente inspirado pelo texto de Mia Couto lido pela professora Filomena Lima. Um texto de leitura obrigatória para todos os que se co-movem contra um dos grandes flagelos das sociedades contemporâneas e que agora partilhamos:

Estou tão feliz que nem rio. Deito-me com desleixo, bastando-me: eu e eu. O regressar de meu marido mediu, até hoje, todas as minhas esperas. O perdoar a meu homem foi medida do desespero. Durante tempos, só tive piedade de mim. Hoje não, eu me desmesuro, pronta a crianceiras e desatinos. Minha alegria, assim tanta, só pode ser errada.
Desculpe-me, Cristo: esplendoroso é o que sucede, não o que se espera. E eu, durante anos, tive vergonha da alegria. Estar-se contente, ainda vá. Que isso é passageiro. Mas ser-se alegre é excessivo como pecado mortalício.
É de noite e falta-me apenas um quase para estar sozinha no quarto. Ou, no rigor: o quarto estar sozinho comigo. Nesta mesma cama sonhei tantas vezes que o meu amor vinha pela rua, eu escutava os seus passos, cheia de ânsia. E antes que ele chegasse, corria a fechar a porta. Fosse esse gesto, o de trancar a fechadura, o meu fingido valimento. Eu fechava a porta para que, depois, o simples abrir dos trincos tivesse o brilho de um milagre. Para que ele, mais uma vez, casasse comigo. E o mundo se abrisse, casa, cama e sonho.
Durante anos, porém, os passos de meu marido ecoaram como a mais sombria ameaça. Eu queria fechar a porta, mas era por pânico. Meu homem chegava do bar, mais sequioso do que quando fora. Cumpria o fel de seu querer: me vergastava com socos e chutos. No final, quem chorava era ele para que eu sentisse pena de suas mágoas. Eu era culpada por suas culpas. Com o tempo, já não me custavam as dores. Somos feitos assim de espaçadas costelas, entremeados de vãos e entrâncias para que o coração seja exposto e ferível.
Venâncio estava na violência como quem não sai do seu idioma. Eu estava no pranto como quem sustenta a sua própria raiz. Chorando sem direito a soluço; rindo sem acesso a gargalhada. O cão se habitua a comer sobras. Como eu me habituei a restos de vida.
A semana passada foi quando o rasgão se deu. Venâncio ficou furioso quando descobriu, em estilhaços, a emoldurada fotografia na nossa sala. Era um retrato antigo, parecia estar ali mesmo antes de haver parede. Nele figurava Venâncio, ainda magro e moço, posando na nossa varanda. Pelo olhar se via que sempre fora dono e patrão. Surjo atrás, desfocada, esquecida. Sem pertença nem presença.
Ao ver a moldura quebrada e os vidros ainda espalhados pelo chão, Venâncio me golpeou com inusitada força, pontapés cruzaram o escuro do quarto entre gritos meus:
- Na barriga não, na barriga não!
Depois, quando ele amainou, interrompi-lhe o choro e me soaram serenas e doces as palavras:
- Vê o sangue, Venâncio? Eu estava grávida…
- Grávida, você?! Com uma idade dessas!??
Arrumei umas poucas roupas e fui, a pé, para o posto de socorro. Era manhã, fazia chuva e caía o sol. Algures, por um aí, deveria fantasiar um arco-íris. Mas eu estava cega para fantasias. Meu filho, esse primeiro que haveria de nascer, estava morto dentro de mim. As minhas mãos, ingénuas, ainda amparavam o ventre como se
ele continuasse lá, enroscado grão de futuro. No passeio público, privadamente tombei. Antes que beijasse o chão já eu perdera as luzes e deixara de sentir a chuva no meu corpo.
Desmaiada, me espreitaram os dentros: gravidez não havia. Mais uma vez era falsa esperança. Esse vazio de mim, essa poeira de fonte seca, o não poder dar descendência a Venâncio, isso doía mais que perder um filho. Eu estava mais estilhaçada, que o retrato da sala.
Quando despertei, me acreditei já morta, transferida para outro mundo. Morrer não me bastava: nesse depois ainda Venâncio me castigaria. Eu necessitava um outro jamais. Adivinhei as minhas fúnebres cerimónias: Venâncio e mais uns tantos, entre vizinhos e parentes. Se o meu homem me chorasse, nessa ida, seria para melhor me esquecer. A lágrima lava a sofrência. Os outros chamariam a isso de amor, saudade. Mas não era a viuvez que atormentaria Venâncio. Viúvo estava ele há muito. O que o podia atormentar era a feiura desta minha morte. Se de mim alguma vez se recordasse, seria para melhor me ausentar, mais desfocada que o retrato da sala.
Venâncio não foi visitar-me ao hospital. O que eu fizera, ao dirigir-me por meu pé ao hospital, foi uma ofensa sem perdão. Até ali eu fechara as minhas feridas no escuro íntimo do lar. Que é onde a mulher deve cicatrizar. Mas, desta vez, eu ousara fazer de Cristo, exibir a cruz e a chaga pelas vistas alheias.
Ao regressar a casa, faço contas às dores. Por certo, Venâncio me espera para me fazer pagar. Por isso, me demoro na varanda como se esperasse um sinal para entrar. E ali permaneço, calada, como fazem as mulheres que, de encontro ao tempo, rezam para nunca envelhecerem.
Quando entro em casa, os estilhaços do retrato rebrilham no chão da sala. O fotografado olhar de Venâncio pousa sobre mim, assegurando os seus direitos de proprietário. Distraída, a minha mão recolhe um vidro. Na cama de casal, meu marido está enroscado, em fundo sono. Deito-me a seu lado e revejo a minha vida. Se errei, foi Deus que pecou em mim. Eu semeei, sim, mas para decepar. Se recolhi os grãos, foi para os deitar no moinho. Há quem chame isto de amor. Eu chamo a cruel dança do tempo. Nessa dança, quem bate o tambor é a mão da morte.
Lição que aprendi: a Vida é tão cheia de luz, que olhar é demasiado e ver é pouco. É por isso que fecham os olhos aos mortos. E é o que faço ao meu marido. Lhe fecho os olhos, agora que o seu sangue se espalha, avermelhando os lençóis.

Couto, Mia (2004) «Os olhos dos mortos», in O Fio das Missangas. Lisboa: Caminho, 2004, pp. 71 -74.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

. Contra a Violência Doméstica



Kasim associa-se à comemoração do Dia Internacional Para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres. É já no dia 25, às 10.00. A Biblioteca contará com a presença da Dra. Carina Martins, em representação da APAV, que orientará uma sessão de sensibilização contra a Violência Doméstica.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

. Bernardo Soares e o Desassossego de Pessoa

Há em Lisboa um número de restaurantes ou casas de pasto (em) que, sobre uma loja com feitio de taberna decente, se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida.
O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-me, em um período da minha vida, a ser frequente em uma sobreloja dessas. Sucedia que, quando calhava jantar pelas sete horas, quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspecto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-me.
Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto do que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava – parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito.
Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse especial ; mas não as observava como que perscrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele.
Passei a vê-lo melhor. Verifiquei que um certo ar de inteligência animava de certo modo incerto as suas feições. Mas o abatimento, a estagnação da angústia fria, cobria tão regularmente o seu aspecto que era difícil descortinar outro traço além desse.
Soube incidentalmente, por um criado do restaurante, que era empregado de comércio, numa casa ali perto.
(…)
Não sei porquê, passámos a cumprimentarmo-nos desde esse dia. Um dia qualquer, que nos aproximara talvez a circunstância absurda de coincidir virmos ambos jantar às nove e meia, entrámos em conversa casual. A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia. Respondi que sim. Falei-lhe da revista Orpheu, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a, elogiou-a bastante, e eu então pasmei de veras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem em Orpheu sói ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade : e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, soía gastar as suas noites, no seu quarto alugado escrevendo também.


É assim que Fernando Pessoa, o próprio, apresenta Bernardo Soares, invenção sua e autor de Livro do Desassossego. Não fora tratar-se de Pessoa e dir-se-ia estarmos perante um exercício literário próximo daquilo que se entende por despersonalização. Em primeiro lugar, porque ninguém tem dúvidas que Soares aparece no seguimento de uma forte necessidade de Pessoa se reencontrar consigo mesmo, e que por isso se observa do exterior, se auto-observa. O mesmo é dizer porque Soares é Pessoa, o próprio, em busca de alguma tranquilidade – O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-me, em um período da minha vida, a frequentar uma sobreloja dessas -. Depois, e se nos alhearmos do carácter voluntário do exercício, porque está lá tudo, ou quase tudo, com que geralmente se caracteriza esse distúrbio dissociativo : o distanciamento em relação aos sentimentos próprios, aos seus actos e pensamentos; a prontidão com que os descreve; o mesmo em relação ao seu próprio corpo; o facto de imaginar conversas com aquele que descreve; isto para não falar da depressão permanente, das desordens afectivas, do sofrimento e vazio angustiantes, numa palavra, da sensação de incompletude que se antevê desde logo nesta apresentação de Soares por Pessoa e que o livro do primeiro confirmará a cada passo.
Tratando-se do poeta português, tudo se complica. Uma vez que Bernardo Soares pode e deve ser entendido como solução encontrada para uma desordem de proporções muito maiores, uma espécie de refúgio forjado face a uma dissociação estrutural que torna o processo de despersonalização quase irrelevante. Sabe-se que Pessoa foi vítima de uma imaginação fértil e impiedosa desde a infância, onde surgem as primeiras presenças heterónimas, tal como o próprio explica numa carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro en 1935, o ano da sua morte: Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Um certo Chevalier de Pas, um capitão Thibeaut e depois Alexander Search, por certo que uma forma de preencher o vazio deixado em aberto pela morte do pai, são apenas alguns exemplos da imaginação fervilhante de Pessoa criança. A mesma criança que sustenta uma relação muito especial com a mãe, obrigada a abandonar o país para acompanhar o novo marido numa missão diplomática na África do Sul, e de quem acabaria por se separar, já jovem adulto, preferindo regressar à sua Lisboa. Depois foi só seguir aquela tendência, dar-lhe livre curso e fazer justiça ao seu próprio nome : Pessoa, personne, persona, que na origem significa máscara, a máscara através da qual nos revelamos e escondemos ao mesmo tempo. Segundo um dos seus poemas escritos em inglês, que dominava por ter feito o liceu em Durban, onde ganhou o seu primeiro prémio de escrita criativa, não terá feito outra coisa senão isso, desdobrar-se em diferentes rostos através dos quais circula inevitavelmente : How many masks wear we, and undermasks/ Upon our contenance of soul, and when,/ If for self sport the soul itself unmasks/ Knows it the last mark off and the face plain?
São múltiplos os heterónimos e semi-heterónimos criados por Pessoa. É possível que alguns permaneçam por revelar no célebre baú que ainda hoje ocupa vários pessoanos. Ele, que tão depressa é nada como traz em si todos os sonhos do mundo: Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Há, no entanto, três que se destacam, quer pelo volume da sua produção literária, a sua consistência se quisermos, quer pela densidade psicológico de que o poeta os dotou. Falo agora de Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, o autor destes versos retirados do célebre Tabacaria.
Em relação à data de nascimento de Ricardo Reis, Pessoa estabelece datas distintas. Primeiro afirma que este lhe surgiu no espírito no dia 29 de Janeiro de 1914 : O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Mais tarde, naquela mesma carta a Casais Monteiro, altera a data deste nascimento afirmando que Ricardo Reis nascera no seu espírito em 1912. O mesmo se passando em relação à respectiva cidade natal, primitivamente Lisboa e depois o Porto. De resto, parece não haverem dúvidas : trata-se do seu primeiro heterónimo importante, ainda que não tenha sido o primeiro a iniciar a sua actividade literária, que seria intensa e coerente até 13 de Dezembro de 1933, o ano da morte de Ricardo Reis. Médico de profissão, monárquico, razão pela qual terá emigrado para o Brasil, recebeu educação num colégio de jesuítas. Domina os clássicos, a forma dos poetas latinos e proclama a disciplina na construção poética. Professa uma concepção de vida simples, aceitando serenamente a relatividade de todas as coisas. É o heterónimo que mais se aproxima do criador, quer no aspecto físico –moreno, de estatura média, andar curvado, magro, com a aparência de um judeu português (Pessoa tinha ascendência israelita)-, quer na maneira de ser e no pensamento. É adepto do sensacionalismo, que herda do mestre Caeiro, e as suas concepções do mundo vai buscá-las ao estoicismo e ao epicurismo.
Alberto Caeiro, o mestre, em torno do qual se determinam os outros heterónimos, nasceu em Abril de 1889 em Lisboa, embora tenha vivido grande parte da sua vida numa quinta do Ribatejo onde viria a conhecer Álvaro de campos. Considera-se simples e natural, de acordo com a sua formação, tendo-se ficado pela instrução primária. É louro, tem olhos azuis e é um pouco mais baixo que Ricardo Reis. É frágil, embora o não aparente muito, e morreu precocemente em 1915 vítima de tuberculose. O mestre é aquele de cuja biografia Pessoa menos se ocupou. Como disse Ricardo Reis, a sua vida foram os seus poemas. Ainda assim, sabe-se que aparece a Pessoa no dia 8 de Março de 1914, de forma aparentemente não planeada, numa altura em que o poeta se debatia com a necessidade de fugir ao subjectivismo e ao misticismo. Daí a simplicidade de Alberto Caeiro, o mesmo que se ri de todos os ocultimos, o que se volta contra a transcendência, o pagão e o materialista que não se perdem em grandes filosofias.
Álvaro de Campos, engenheiro de profissão, nasceu em Tavira no ano de 1890. Estudou na Escócia, Glasgow, e formou-se em engenharia naval. Visitou o oriente e durante essa visita, a bordo, no Canal do Suez, escreve o poema Opiário, dedicado a Mário de Sá-Carneiro. Desiludido com a visita, regressa a Portugal onde se encontrará com o mestre Caeiro, tornando-se seu discípulo. Distanciando-se dele, no entanto, ao aproximar-se de movimentos modernistas como o futurismo e o sensacionismo. Distancia-se ainda do objectivismo do mestre, preferindo organizar as sensações em torno do sujeito. O que o levará mais tarde a cair no subjectivismo, na consciência do absurdo, na experiência do tédio e da desilusão. A sua primeira composição data de 1914 e em 12 de Outubro de 1935 ainda assinava poesias. Pouco antes, portanto, da morte de Fernando Pessoa, que deixara de assinar qualquer texto.
Parece pois, isto se quisermos analisar a obra do autor sob o ponto de vista dos distúrbios dissociativos de identidade, que por detrás de um exercício de aparente despersonalização, o texto-apresentação de onde partíamos, se impõe um transtorno de personalidade múltipla mais profundo. Como acontece nesses casos, também aqui se definem várias personalidades distintas e separadas numa mesma pessoa, cada uma com os seus comportamentos e sentimentos próprios. O que o torna um caso particularmente interessante, para lá do facto de se desconhecer o número exacto das múltiplas personalidades, é o facto de estas não se ignorarem entre si e chegarem mesmo a conhecer-se, estabelecendo relações pessoais umas com as outras. Como fica claro pelas respectivas biografias, os heterónimos não só se cruzam – Campos chega mesmo a tornar-se discípulo de Caeiro-, como se citam e comentam repetidas vezes, o que geralmente não acontece nos casos típicos de clivagem do eu. Um caso de distúrbio controlado? Mais um caso de sublimação artística? Ainda que mais complexo? Outra oportunidade para avaliar as possibilidades de uma cura pela arte? Não é Bernardo Soares o primeiro a afirmar que a vida nada será se não for a arte a conferir-lhe sentido? Uma oportunidade para repensar a psicanálise, também ela, enquanto exercício artístico? A confirmação de que a clivagem é estrutural na relação com o Outro, como disse Lacan, e não necessariamente do domínio da psicose como pretendia Freud? Em relação a isso, ouçamos o próprio Fernando Pessoa, mais uma vez na carta a Casais Monteiro: A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação.
Em relação à existência de uma identidade primária, como quase sempre acontece nestes casos, a situação é igualmente interessante. E isto porque não temos apenas uma, mas três, se insistirmos em separar Pessoa de Soares, que afinal são o mesmo em busca da mesma tranquilidade. Temos Caeiro, o mestre, ele próprio um heterónimo em relação ao qual os outros se determinam. Soares, que revela conhecimento de todos. E Pessoa ortónimo, que delega essa função no autor do Livro do Desassossego. Um livro escrito por um homem obviamente sujeito a depressões, tomado pelo tédio -este é talvez o vocábulo mais utilizado ao longo do livro-, pela angústia de ter que existir, e que por isso mesmo se entrega a um exercício de introspecção sem freio, a uma espécie de auto-análise que desoculta a vida espiritual ardente de um modesto empregado de comércio : Invejo – mas não sei de invejo – aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho a dizer.
O livro propriamente dito, esse, é um livro definitivamente ausente, sem centro, escrito ao sabor do acaso, sem plano orgânico, repleto de impressões intimistas e tortuosas. Um livro em que a forma e o fundo se confundem inevitavelmente. Como Breton virá a dizer do seu Nadja, um livro que deixamos entreaberto como as portas, e do qual não há chave a procurar. Um livro em que a intranquilidade, uma consciência flutuante incapaz de se ligar a si mesma e ao mundo, e só essa, assume total protagonismo. Um livro escrito por alguém, tal como Soares diz de si próprio, que observa o desmoronamento da sua própria vida –Tenho assistido, incógnito, ao desfalecimento gradual da minha vida, ao soçobro lento de tudo quanto quis ser-, a vida de alguém que se dispõe a vampirizar e viver os sonhos dos outros – O que se passa, de facto, é que faço dos outros o meu próprio sonho. Enfim, a vida de um ser humano, como tantos outros, tal qual Álvaro de Campos assume em Poema em linha recta - Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil-, cuja dispersão ou distúrbio, que Soares exibe como quem exibe as suas doenças, também serão explicáveis pela morte do pai de Pessoa-criança, pelo seu afastamento em relação à mãe, pela quase ausência total de vida afectiva, bem como pelo álcool que consumiu excessivamente ao longo de toda a vida. Numa palavra, o virgem negra.1


1.O Virgem Negra é o título de um livro de Mário de Cesariny, o mais importante dos surrealistas portugueses, onde o poeta se propõe ironicamente explicar Pessoa às criancinhas. O livro chamar-se-á assim porque quando se procedeu à transladação dos restos mortais de Pessoa do cemitério primitivo para o Mosteiro dos Jerónimos, onde agora faz companhia a Camões, outro grande poeta nacional, se constatou que o cadáver, ou parte dele, permanecia incorrupto e enegrecido. Uma vida afogada em álcool? Talvez.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

. O Dia Internacional Para a Tolerância

O Dia Internacional Para a Tolerância, 16 de Novembro, foi instituído pela ONU, estávamos em 1995, em reconhecimento da Declaração de Paris. Uma Declaração onde todos os 185 estados signatários se comprometem a zelar pelos Direitos Humanos Fundamentais. Kasim associa-se às iniciativas que celebram o seu aniversário e deixa-te o vídeo que se segue.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

.Ainda Pessoa

Propomos dois pequenos vídeos de uma série que a RTP2 dedicou aos Grandes livros. O primeiro, porque é uma espécie de álbum de família de Pessoa, além de que explica o nascimento dos seus heterónimos. O segundo, porque é exclusivamente dedicado ao Livro do Desassossego, o menos conhecido e talvez o mais importante livro do poeta. Ambos, porque ilustram a tese que será defendida já no dia 18 de Novembro na nossa biblioteca. Por um lado, que a sua história individual determinou decisivamente a sua produção artística, muito particularmente a necessidade de se estilhaçar em heterónimos. Por outro, que é no Livro do Dessassossego que todos os heterónimos se encontram, em busca de uma tranquilidade que não chega. Em relação aos outros vídeos, igualmente importantes, poderão encontrá-los à distância de um "clic" no YouTube.


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

.Encenações do Corpo na Arte Contemporânea

Porque a Biblioteca é um espaço onde se cruzam diferentes saberes, o Dia Internacional da Biblioteca Escolar vai ser assinalado, na nossa escola, com a conferência "Encenações do corpo na Arte Contemporânea" proferida pelo professor Daniel Nave.
É às 10h do dia 26 de Outubro no Auditório da escola.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

.Entretanto...

...ficam aqui duas sugestões, para aguçar o apetite. Uma, com o saudoso Mário Viegas. Outra, com os Wordsong, um projecto musical contemporâneo que dá voz, como deu aquele, à poesia de Pessoa. Ambos, a propósito de Opiário, poema escrito durante uma viagem ao Oriente, a bordo, no Canal Suez, e que o poeta dedicou ao seu amigo Mário de Sá-Carneiro.



.Fernando Pessoa na Gama Barros


É já no dia 18 de Novembro, às quinze horas. A Biblioteca abre as portas a todos os interessados em Pessoa. Bernardo Soares e o Desassossego de Fernando Pessoa é o título da comunicação, uma perspectiva psicanalítica sobre a vida e obra do poeta, que será seguida de debate. Aparece!

.Porquê Kasim?

Porque a Gama Barros, a nossa escola, fica no Cacém. Porque Cacém, do árabe Kasim, significa partilhar. Porque Kasim é isso mesmo: um espaço de partilha. Partilha de saberes, experiências e preocupações. Da literatura às Artes plásticas, das artes em geral à luta pelos Direitos Humanos, das plantas e dos animais também, com um olho na Filosofia e na Ciência, tudo circulará livremente em Kasim. Porque a Escola não é uma sala de aula, porque o conhecimento não se esgota nos manuais. Numa palavra, porque sim.